HENRY
DAVID THOREAU
A
desobediencia civil
[1849]
Aceito
de bom grado a divisa “O melhor governo é o que menos governa”, e gostaria de
vê-la aplicada de modo mais rápido e sistemático. Levada a cabo, ela resulta
por fim nisto, em que também acredito: “O melhor governo é o que absolutamente
não governa”, e quando os homens estiverem preparados para tanto, esse será o
tipo de regência que terão. Na melhor das hipóteses, o governo não é mais que
uma conveniência; mas a maioria deles é, em geral (e alguns o são às vezes),
inconveniente. As objeções levantadas contra um exército permanente — e elas
são muitas e convincentes, e merecem se impor — podem também ser levantadas
afinal contra um governo permanente. O exército permanente é somente um braço
do governo permanente. O governo em si, que é apenas o modo que o povo escolheu
para executar sua vontade, está igualmente sujeito ao abuso e à perversão antes
que o povo possa agir por meio dele. Prova disso é a atual guerra mexicana,
obra de relativamente poucos indivíduos que usam o governo permanente como seu
instrumento, pois, desde o princípio, o povo não teria consentido semelhante
iniciativa. O que é este governo americano senão uma tradição, ainda que
recente, empenhada em se transmitir intacta à posteridade, mas a cada instante
perdendo um pouco de sua integridade? Não tem a vitalidade e a força de um
único homem vivo, pois um único homem pode dobrá-lo à sua vontade. É uma
espécie de revólver de brinquedo para o próprio povo. Mas nem por isso é menos
necessário; pois o povo precisa dispor de um ou outro maquinário complicado, e
ouvir seu estrondo, para satisfazer sua ideia de governo. Os governos nos
mostram, desta maneira, com que êxito os homens podem ser subjugados, inclusive
por si mesmos, em proveito próprio. É ótimo, devemos todos admitir. No entanto,
esse governo nunca levou a cabo empreendimento algum, a não ser pela presteza
com que deixa livre o caminho. Não é ele que mantém o país livre. Não é ele que
coloniza o Oeste. Não é ele que educa. O caráter inerente ao povo americano é
que fez tudo o que se conseguiu até agora, e teria feito ainda pouco mais, se o
governo às vezes não atrapalhasse. Pois o governo é um expediente mediante o
qual os homens, de bom grado, deixariam uns aos outros em paz; e, como foi
dito, quanto mais conveniente ele for, mais os governados serão deixados em
paz. O comércio e os negócios, se não fossem feitos de borracha da Índia, nunca
conseguiriam saltar os obstáculos que os legisladores estão pondo o tempo todo
em seu caminho. Se julgássemos esses homens apenas pelos resultados de suas
ações, e não por suas intenções, eles mereceriam ser enquadrados e punidos
junto com as pessoas malévolas que obstruem as estradas de ferro.
Mas,
para falar em termos práticos e me expressar como cidadão, à diferença daqueles
que se dizem antigovernistas, eu não peço a imediata abolição do governo, mas
um que seja melhor agora mesmo. Que cada homem faça saber qual é o tipo de
governo capaz de conquistar seu respeito, e isso já será um passo na direção de
alcançá-lo. Afinal, quando o poder está nas mãos do povo, a razão prática pela
qual uma maioria tem permissão para governar (e assim o faz por um longo
período) não é o fato de essa maioria provavelmente estar certa, nem tampouco
que isso possa parecer mais justo à minoria, mas sim porque ela é fisicamente
mais forte. Mas um governo no qual a decisão da maioria se impõe em todas as
questões não pode ser baseado na justiça, mesmo no entendimento limitado que os
homens têm desta. Não poderia existir um governo em que não são as maiorias que
decidem virtualmente tudo o que é certo e errado, e sim a consciência? No qual
as maiorias decidissem apenas as questões em que fosse aplicável a regra da
conveniência? Será que o cidadão deve, ainda que por um momento e em grau
mínimo, abrir mão de sua consciência em prol do legislador? Nesse caso, por que
cada homem dispõe de uma consciência? Penso que devemos ser primeiro homens, e
só depois súditos. Não é desejável cultivar tanto respeito pela lei quanto pelo
que é direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer em
qualquer tempo o que julgo ser correto. Já se disse, com muita razão, que uma
corporação não tem consciência alguma; mas uma corporação de homens
conscienciosos é uma corporação com uma consciência. A lei nunca tornou os
homens sequer um pouquinho mais justos; e, por força de seu respeito por ela, até
mesmo os mais bem-intencionados são convertidos diariamente em agentes da
injustiça. Um resultado comum e natural do respeito indevido pela lei é que se
pode ver uma fila de soldados, coronel, capitão, cabo, recrutas, carregadores
de explosivos e tudo o mais, marchando em ordem admirável pelos caminhos mais
tortuosos para a guerra, contra sua vontade, pior ainda, contra sua sensatez e
sua consciência, o que torna a marcha realmente muito dura e faz o coração
palpitar. Eles não têm dúvida de que estão envolvidos numa atividade execrável;
são todos de inclinação pacífica. Então, o que eles são? Homens, na acepção do
termo? Ou casamatas e paióis ambulantes, a serviço de algum homem inescrupuloso
no poder? Basta visitar o estaleiro da Marinha e contemplar um fuzileiro naval,
assim é um homem que um governo norte-americano é capaz de produzir, ou
transformar com sua magia negra — uma mera sombra ou reminiscência de
humanidade, um homem deixado vivo e em pé, mas já, poderíamos dizer, enterrado
sob armas com acompanhamento fúnebre, embora talvez seja o caso de que:
Nenhum tambor se ouviu, nem nota
fúnebre, Enquanto para a vala seu corpo foi levado;
Nenhum soldado disparou seu tiro de adeus Sobre a cova onde nosso herói foi enterrado.
Nenhum soldado disparou seu tiro de adeus Sobre a cova onde nosso herói foi enterrado.
Assim,
a massa de homens serve ao Estado não na qualidade de homens, mas como
máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os
carcereiros, os policiais, os membros de destacamentos etc. Na maioria dos
casos, não há, em absoluto, o livre exercício do julgamento ou do senso moral;
ao contrário, eles se rebaixam ao nível da madeira, da terra e das pedras; e
homens de madeira talvez pudessem ser manufaturados para servir aos mesmos
propósitos. Não suscitam mais respeito que espantalhos ou bonecos de lama. Têm
valor comparável ao de cavalos ou cães. No entanto, homens assim são geralmente
estimados como bons cidadãos. Outros — como a maioria dos legisladores,
políticos, advogados, ministros e funcionários públicos — servem ao Estado
sobretudo com a cabeça; e, como raramente fazem qualquer distinção moral, podem
tanto servir ao D iabo, sem ter a intenção, como a Deus. Pouquíssimos — tais
como os heróis, patriotas, mártires, reformadores em sentido amplo e homens —
servem ao Estado também com sua consciência, e portanto necessariamente
resistem a ele a maior parte do tempo; e costumam ser tratados por ele como
inimigos. Um homem sábio só será útil na condição de homem, e não se rebaixará
a ser “barro” e “tapar um buraco para deter o vento”, mas deixará esta tarefa,
quando muito, para suas cinzas:
Tenho origem nobre demais para me
submeter a outro,
Para ser subordinado no comando,
Ou serviçal e instrumento útil
A qualquer estado soberano mundo afora.
Aquele
que se entrega inteiramente a seus semelhantes é visto por estes como inútil e
egoísta; mas aquele que se entrega parcialmente é considerado um benfeitor e
filantropo. Qual é o comportamento que convém a um homem com relação ao governo
norte-americano atual? Respondo que ele não pode, sem se desonrar, associar-se
a ele. Não posso, nem por um instante, reconhecer como meu governo essa
organização política que é também o governo do escravo. Todos os homens
reconhecem o direito de revolução; isto é, o direito de recusar obediência ao
governo, e de resistir a ele, quando sua tirania ou sua ineficiência são
grandes e intoleráveis. Mas quase todos dizem que não é esse o caso agora. No
entanto, tal era o caso, julgam eles, na Revolução de 75. Se alguém me dissesse
que aquele era um mau governo porque taxava certos bens estrangeiros trazidos a
seus portos, é muito provável que eu não me importasse, já que posso passar sem
eles. Todas as máquinas têm sua fricção, e possivelmente isso tem um efeito
suficientemente bom para contrabalançar o ruim. De qualquer modo, é um grande
mal fazer alvoroço em torno disso. Mas quando a fricção passa a comandar a
máquina, e a opressão e a ladroagem são organizadas, eu digo: Não vamos mais
manter essa máquina. Em outras palavras, quando um sexto da população do país
que se apresenta como refúgio da liberdade é composto de escravos, e uma nação
inteira é injustamente atacada, conquistada por um exército estrangeiro e
submetido à lei militar, penso que não é cedo demais para os homens honestos se
rebelarem e fazerem a revolução. O que torna ainda mais urgente esse dever é o
fato de que o país assim atacado não é o nosso, pois nosso é o exército
invasor. Paley, uma notória autoridade em questões morais, em seu capítulo
sobre o “Dever de submissão ao governo civil”, reduz toda a obrigação civil à
conveniência; e prossegue dizendo que só enquanto o interesse de toda a
sociedade assim o exigir, isto é, só enquanto não se puder resistir ao governo
estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência pública, é vontade de Deus que o
governo estabelecido seja obedecido. Admitido esse princípio, a justeza de cada
caso particular de resistência se reduz ao cálculo, por um lado, da quantidade
de perigo e calamidade que ele encerra, e, por outro, da probabilidade e do
custo de remediá-la.
Quanto
a isso, diz ele, cada homem deve julgar por conta própria. Mas Paley parece não
ter jamais contemplado aqueles casos aos quais a regra da conveniência não se
aplica, nos quais um povo, bem como um indivíduo, precisa fazer justiça, custe
o que custar. Se eu, injustamente, arranquei à força a tábua de salvação de um
homem que estava se afogando, devo devolvê-la mesmo que eu me afogue. Isso, de
acordo com Paley, seria inconveniente. Mas aquele que quer salvar sua vida
dessa maneira deve perdê-la. Este povo deve parar de manter escravos, e de
guerrear contra o México, ainda que isso custe a ele sua existência como povo.
Em sua prática, as nações concordam com Paley; mas será que alguém julga que
Massachusetts faz exatamente o que é certo na crise atual?
Uma meretriz de classe, uma rameira com
roupa de prata
Ergue a cauda do vestido, e arrasta a
alma na lama.
Falando
em termos práticos, os adversários de uma reforma em Massachusetts não são 100
mil políticos do Sul, mas 100 mil comerciantes e fazendeiros daqui, que estão
mais interessados no comércio e na agricultura do que na humanidade, e não
estão preparados para fazer justiça aos escravos e ao México, custe o que
custar. Não discuto com inimigos distantes, mas com aqueles que, perto da minha
casa, obedecem e cooperam com os que estão longe, e que sem eles seriam
inofensivos. Estamos habituados a dizer que as massas são despreparadas; mas o
aprimoramento é lento, porque a minoria não é essencialmente mais sábia ou
melhor que a maioria. Mais importante do que haver muitos que sejam bons como
você é haver em algum lugar a excelência absoluta, pois isso fará fermentar a
massa como um todo. Há milhares que se opõem em tese à escravidão e à guerra,
mas que nada fazem efetivamente para pôr fim a elas. Há muitos que,
considerando-se filhos de Washington e Franklin, ficam sentados de braços
cruzados e dizem não saber o que fazer, e nada fazem; muitos que até mesmo
subordinam a questão da liberdade à questão do livre-comércio, e que leem
tranquilamente, depois do jantar, as cotações do dia junto com as últimas
notícias vindas do México, e possivelmente adormecem sobre ambas. Quanto vale
um homem honesto e patriota nos dias de hoje? Eles hesitam, lamentam e às vezes
reivindicam; mas não fazem nada a sério e para valer. Esperarão, com boa
vontade, que outros curem o mal, para que eles não mais tenham que lastimá-lo.
Na melhor das hipóteses, eles se limitarão a dar um voto fácil, um débil apoio
e um desejo de boa sorte aos corretos, quando a ocasião se apresentar. Há 999
arautos da virtude para cada homem virtuoso. Porém é mais fácil lidar com o real
possuidor de uma coisa do que com seu guardião temporário. Toda votação é uma
espécie de jogo, como damas ou gamão, com um leve matiz moral, uma brincadeira
em que existem questões morais, o certo e o errado, e evidentemente é
acompanhada de apostas. O caráter dos votantes não entra em jogo. Deposito meu
voto, talvez, de acordo com o que julgo correto; mas não estou vitalmente
preocupado com a vitória do certo. Estou disposto a deixar isso para a maioria.
A obrigação do voto, portanto, nunca vai além do que é conveniente. Mesmo votar
pelo que é correto não é o mesmo que fazer alguma coisa por ele. É apenas
expressar debilmente aos outros o desejo de que o certo prevaleça. Um homem
sábio não deixará o que é correto à mercê da sorte, nem desejará que ele
prevaleça mediante o poder da maioria. Há pouca virtude na ação das massas.
Quando a maioria finalmente votar pela abolição da escravidão, isso se dará
porque a escravidão lhe é indiferente, ou porque terá restado pouca escravidão
a ser abolida por seu voto. A essa altura serão eles, os da maioria, os únicos
escravos. Só pode apressar a abolição o voto daquele que afirma sua própria
liberdade por meio do voto. Ouço dizer que será realizada em Baltimore, ou
alhures, uma convenção para a escolha de um candidato à presidência, com a
participação predominante de editores e políticos profissionais; mas me
pergunto: Para qualquer homem independente, inteligente e respeitável, que
importância pode ter a decisão tomada pela convenção? Não usufruiremos, de todo
modo, do privilégio da sabedoria e da honestidade desse homem? Não podemos
contar com alguns votos independentes? Não existem neste país muitos indivíduos
que não participam de convenções? Mas não: descubro que o homem respeitável, ou
assim chamado, abandonou prontamente sua posição e não espera mais nada de seu
país, quando é o seu país que tem mais motivos para nada mais esperar dele. Ele
mais que depressa adota um dos candidatos assim escolhidos como o único disponível,
provando desse modo que ele próprio está disponível para todos os propósitos do
demagogo. Seu voto não tem mais valor do que o de qualquer forasteiro sem
princípios ou nativo mercenário, que pode muito bem ter sido comprado.
Oh,
mas um homem que é de fato um homem, como diz meu vizinho, tem uma coluna
dorsal que não se verga! Nossas estatísticas estão incorretas: gente demais foi
computada. Quantos verdadeiros homens existem em cada quilômetro quadrado neste
país? Quando muito, um. Será que a América não oferece atrativos para que os
homens aqui se estabeleçam? O homem norte-americano foi definhando até virar um
Odd Fellow — alguém conhecido pela hipertrofia de seu caráter gregário, por uma
manifesta falta de intelecto e de animada autoconfiança; alguém cuja principal
preocupação, ao vir para este mundo, é saber se os abrigos de pobres estão em
boas condições; e que, antes mesmo de vestir a túnica viril, angaria donativos
para o sustento de viúvas e órfãos; alguém, em suma, que só ousa viver com a
ajuda da companhia de Auxílio Mútuo, que lhe prometeu um enterro decente. Não é
obrigação de um homem, evidentemente, dedicar-se à erradicação de um mal
qualquer, nem mesmo do maior que exista; ele pode muito bem ter outras
preocupações que o absorvam. Mas é seu dever, pelo menos, manter as mãos limpas
e, mesmo sem pensar no assunto, recusar o apoio prático ao que é errado. Se eu
me dedico a outros planos e atividades, devo antes de mais nada garantir, no
mínimo, que para realizá-los não estarei pisando nos ombros de outro homem.
Devo
sair de cima dele para que também ele possa perseguir seus objetivos.
Vejam
como uma incoerência das mais graves é tolerada. Ouvi alguns de meus
conterrâneos dizerem: “Queria ver se me convocassem para ajudar a reprimir uma
insurreição dos escravos ou para marchar contra o México: eu não iria de jeito
nenhum”. No entanto, cada um desses mesmos homens, seja diretamente, com sua
conivência, seja indiretamente, com seu dinheiro, propicia o envio de um
substituto. O soldado que se recusa a lutar numa guerra injusta é aplaudido por
aqueles que não se recusam a apoiar o governo injusto que faz a guerra; é
aplaudido por aqueles cujos atos e cuja autoridade ele despreza; como se o
Estado fosse penitente a ponto de contratar alguém para açoitá-lo enquanto ele
peca, mas não a ponto de deixar de pecar por um instante sequer. Assim, em nome
da Ordem e do Governo Civil, somos todos levados, em última instância, a
prestar homenagem e apoio a nossa própria torpeza.
Depois
do enrubescimento inicial de vergonha pelo pecado vem a indiferença; e de
imoral, o pecado se torna, por assim dizer, amoral, e não totalmente
desnecessário à vida que edificamos. O erro mais amplo e frequente requer a
virtude mais desinteressada para se sustentar. É o homem nobre o mais propenso
a fazer as leves ressalvas a que geralmente está sujeita a virtude do
patriotismo. Aqueles que, embora desaprovando o caráter e as medidas de um
governo, empenham a ele sua obediência e seu apoio são sem dúvida seus
defensores mais conscienciosos, e por conta disso, com muita frequência, os
mais sérios opositores das reformas. Alguns estão reivindicando ao estado que
dissolva a União, desprezando as determinações do presidente. Por que eles
próprios não dissolvem a união entre eles e o estado, recusando-se a pagar sua
cota ao tesouro nacional? Acaso eles não mantêm uma relação com o estado
semelhante àquela que este mantém com a União? E as razões que impedem o estado
de resistir à União não são as mesmas que os impedem de resistir ao estado? Como
pode um homem se satisfazer em ter uma opinião e se deleitar com ela? Que
deleite pode haver nisso, se sua opinião for a de que ele está sendo lesado? Se
seu vizinho lhe subtrai por artimanhas um simples dólar, você não ficará
satisfeito apenas em saber que foi ludibriado, ou em proclamar o fato, ou mesmo
em reivindicar a ele que pague o que lhe é devido; imediatamente você tomará
medidas efetivas para reaver a quantia completa e assegurar-se de que nunca
mais seja tapeado. A ação baseada em princípios, a percepção e a prática do que
é certo, isso muda as coisas e as relações; é algo necessariamente
revolucionário, e não condiz de forma integral com qualquer coisa preexistente.
Uma ação assim não divide apenas estados e igrejas, ela divide famílias; mais
que isso, divide o indivíduo, separando o que há de diabólico nele do que há de
divino. Leis injustas existem: devemos nos contentar em obedecê-las? Ou nos
empenhar em aperfeiçoá-las, obedecendo-as até obtermos êxito? Ou devemos
transgredi-las imediatamente? Em geral, sob um governo como o nosso, os homens
julgam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar as leis.
Pensam que, se resistissem, o remédio seria pior que os males. Mas é culpa do
próprio governo que o remédio seja de fato pior que os males. É ele, o governo,
que o torna pior. Por que ele não se mostra mais inclinado a se antecipar e a
providenciar as reformas? Por que não valoriza suas minorias sensatas? Por que
ele chora e resiste antes mesmo de ser ferido? Por que não encoraja seus
cidadãos a estar alertas para apontar suas falhas, e assim melhorar sua atuação
para com eles? Por que ele sempre crucifica Cristo, excomunga Copérnico e
Lutero e declara Washington e Franklin rebeldes? Poder-se-ia pensar que a única
transgressão nunca cogitada pelo governo é a da deliberada negação prática da
sua autoridade; se assim não fosse, por que ele não teria determinado para ela
uma penalidade definida, adequada e proporcional? Se um homem sem propriedades
se recusa uma única vez a pagar nove xelins de tributo ao Estado, é colocado na
prisão por um período não limitado por nenhuma lei conhecida, mas determinado
unicamente pelo arbítrio daqueles que o puseram lá; mas se ele roubar noventa
vezes a mesma quantia do Estado, logo terá permissão para ficar livre de novo.
Se a injustiça faz parte da necessária fricção da máquina de governo, deixe
estar: talvez ela acabe por suavizar-se — certamente a máquina se desgastará.
Se a injustiça tiver uma mola própria e exclusiva, ou uma polia, ou uma corda,
ou uma manivela, talvez seja o caso de avaliar se o remédio não seria pior que
o mal; mas se ela for do tipo que requer que você seja o agente da injustiça
contra outra pessoa, então, eu digo: Viole a lei. Deixe que sua vida seja uma
contrafricção que pare a máquina. O que eu tenho a fazer é cuidar, de todo
modo, para não participar das mazelas que condeno. Quanto a adotar os métodos
que o Estado propicia para remediar o mal, não sei nada sobre eles. Levam muito
tempo, e a vida de um homem pode acabar antes de eles vingarem. Tenho outros
afazeres aos quais me dedicar. Não vim a este mundo predominantemente para
fazer dele um bom lugar, mas para viver nele, seja bom ou ruim. Um homem não
tem obrigação de fazer tudo, mas alguma coisa; e o fato de não poder fazer tudo
não o obriga a fazer alguma coisa errada. Não é minha tarefa reivindicar ao
governador ou ao Legislativo, assim como não é tarefa deles me fazer
reivindicações; e, se eles não ouvirem a minha reivindicação, o que devo fazer?
Mas, neste caso, o Estado não deixa saída: o mal está em sua própria
constituição. Isto pode parecer demasiado duro, obstinado e intransigente; mas
é para tratar com a mais extrema bondade e a mais extrema consideração os
únicos espíritos capazes de apreciá-la e merecê-la. Assim é toda mudança para
melhor, como o parto e a morte, que convulsionam o corpo. Não hesito em dizer
que aqueles que se autodenominam abolicionistas deveriam retirar imediatamente
seu apoio, pessoal e material, ao governo de Massachusetts, em vez de esperar
até constituir uma apertada maioria para fazer o bem prevalecer por meio dela.
Penso que basta que tenham Deus ao seu lado, sem precisar esperar pelo voto que
lhe dê maioria. Além do mais, qualquer homem mais direito que seus vizinhos
constitui em si uma maioria de um. Uma vez por ano, não mais, me avisto
diretamente, cara a cara, com este governo norte-americano, ou com seu
representante, o governo do estado, na pessoa de seu cobrador de impostos. É a
única ocasião em que um homem da minha situação tem necessidade de se deparar
com este governo; e é então que ele, o governo, diz claramente: Reconheça-me. E
a maneira mais simples, mais efetiva e, na atual conjuntura, mais indispensável
de tratar com ele, de expressar-lhe nosso escasso contentamento e apreço, é
simplesmente negá-lo. Meu vizinho e concidadão, o cobrador de impostos, é o
mesmo homem com quem tenho de lidar — pois, afinal de contas, é com homens que
eu discuto, não com papéis — e ele escolheu por vontade própria ser um agente
do governo. De que modo ele saberá discernir o que é e o que faz como
funcionário do governo, ou como homem, enquanto não for obrigado a avaliar se
deve tratar a mim, seu vizinho, pelo qual tem respeito, como um vizinho e um
homem de boa índole, ou como um maníaco perturbador da paz? Como saberá se pode
superar esse obstáculo à sua sociabilidade sem um pensamento mais impetuoso ou
uma palavra mais rude condizentes com sua atividade? De uma coisa estou certo:
se mil homens, se cem homens, se dez homens que pudessem ser assim chamados —
se apenas dez homens honestos — ah, se um único homem honesto, neste estado de
Massachusetts, deixasse de ter escravos, abandonando assim sua coparticipação,
e por isso fosse preso na cadeia local, isso seria a abolição da escravidão na
América. Pois não importa quão pequeno possa parecer o ponto de partida: o que
é bem-feito é para sempre. Mas gostamos mais de falar sobre o assunto: dizemos
ser essa a nossa missão.
As
reformas têm um grande número de jornais a seu serviço, mas nem sequer um único
homem. Se, em vez de ser ameaçado de prisão na Carolina, meu estimado
concidadão, o embaixador do estado de Massachusetts, que dedica seus dias à
resolução da questão dos direitos humanos na Câmara do Conselho, fosse
prisioneiro de Massachusetts, o estado que é tão ansioso em imputar o pecado da
escravidão ao estado irmão — embora, hoje, só possa apontar um ato de
inospitalidade como causa de desavença com ele —, a Legislatura não deixaria
inteiramente de lado o assunto no próximo inverno. Em um governo que aprisiona
qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é também a
prisão. O local apropriado hoje, o único que Massachusetts propicia para seus
espíritos mais livres e menos desesperançados, são as prisões, nas quais serão
enfiados e excluídos do estado por ação deste, os mesmos homens que se
retiraram a si mesmos por seus próprios princípios. É ali que deveriam
encontrá-los o escravo fugitivo, o prisioneiro mexicano em liberdade
condicional e o índio que protesta contra as injustiças sofridas por sua raça;
naquele terreno recluso, porém mais livre e honrado, onde o Estado coloca os
que não estão com ele, mas contra ele — a única casa num estado escravo na qual
um homem livre pode viver honradamente. Se alguém julga que sua influência ali
se perderá, que sua voz não atingirá mais os ouvidos do Estado, e que não será
um inimigo efetivo dentro de suas muralhas, é porque não sabe o quanto a
verdade é mais forte do que o erro, nem o quanto pode combater a injustiça com
mais eloquência e eficácia quem experimentou um pouco dela em sua própria
pessoa. Expresse seu voto por inteiro, não por meio de uma simples folha de
papel, mas por toda a sua influência. Uma minoria é impotente enquanto se
conforma à maioria; não chega nem a ser uma minoria, então; mas é irresistível
quando intervém com todo o seu peso. Se a alternativa for entre colocar todos
os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não
hesitará em sua escolha. Se mil homens deixassem de pagar seus impostos este
ano, isso não seria uma atitude violenta e sangrenta; violento e sangrento
seria pagá-los, capacitando o Estado a cometer violência e derramar sangue
inocente. Esta é, com efeito, a definição de uma revolução pacífica, se tal
coisa é possível. Se o coletor de impostos, ou qualquer outro servidor público,
perguntar-me, como já fez uma vez, “Mas então o que devo fazer?”, minha
resposta será: “Se quer mesmo fazer alguma coisa, demita-se de seu cargo”.
Quando o súdito recusa sua submissão e o funcionário se demite do cargo, a
revolução se consuma. Mas suponhamos, até, que se chegue a derramar sangue. Já
não há uma espécie de derramamento de sangue quando a consciência é ferida? Por
esse ferimento escorrem a verdadeira hombridade e a imortalidade de um homem, e
ele sangra até a morte definitiva. Vejo agora mesmo esse sangue correr. Refleti
sobre o encarceramento do infrator, e não sobre a apreensão de seus bens —
embora ambos os atos sirvam ao mesmo propósito —, porque os que se batem pela
mais pura justiça, e consequentemente são mais perigosos para um Estado
corrupto, não costumam dedicar muito tempo a acumular propriedades. A esses o
Estado presta comparativamente poucos serviços, e um pequeno imposto costuma
ser considerado exorbitante, sobretudo se eles são obrigados a pagá-lo com
dinheiro obtido com trabalho braçal. Se houvesse alguém que vivesse
inteiramente sem o uso do dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir-lhe algum.
Mas o homem rico — sem querer fazer uma comparação invejosa — está sempre
vendido à instituição que o torna rico. Falando em termos gerais, quanto mais
dinheiro, menos virtude, pois o dinheiro se interpõe entre um homem e seus
objetivos, e os alcança para ele, e certamente não há grande mérito em
alcançá-los dessa maneira. Agindo assim, ele deixa de lado muitas questões que,
de outro modo, seria obrigado a responder; ao passo que a única nova questão
que ele se coloca é a difícil e supérflua de saber como gastar o dinheiro.
Assim, seu terreno moral é tirado de sob seus pés. As oportunidades de viver
diminuem na mesma proporção em que se acumulam os chamados “meios”. Quando fica
rico, o melhor que um homem tem a fazer por sua cultura é tentar levar a cabo os
planos que cogitava quando era pobre. Cristo respondeu aos súditos de Herodes
de acordo com a situação deles. “Mostrai-me o dinheiro dos tributos”, disse; e
um dos homens tirou do bolso uma moeda. Se vocês usam dinheiro com a imagem de
César gravada, e que se tornou corrente e válido, isto é, se vocês são homens
do Estado, e com alegria usufruem as vantagens do governo de César, então
restituamlhe um pouco do que é dele quando ele o exige: “Dai pois a César o que
é de César, e a Deus o que é de Deus”, disse, deixando-os sem saber mais do que
antes sobre qual era qual, pois eles mesmos não queriam saber. Quando converso
com os mais livres dos meus concidadãos, percebo que, não importa o que eles
possam dizer sobre a magnitude e a seriedade da questão, e qualquer que seja
seu apreço pela tranquilidade pública, o fato é que eles não podem abrir mão da
proteção do governo atual e temem as consequências da desobediência sobre suas
propriedades e suas famílias. De minha parte, não gosto de pensar que um dia venha
a depender da proteção do Estado. Mas, se eu nego sua autoridade quando ele
impõe seus tributos, ele logo tomará e devastará todas as minhas propriedades,
e importunará a mim e a meus filhos para sempre. Isso é duro. Isso torna
impossível a um homem viver honestamente, e ao mesmo tempo com conforto, no que
diz respeito ao aspecto exterior.
Não
valerá a pena acumular bens; com certeza seriam tomados de novo. O que se deve
fazer é arrendar ou tomar posse de uma terra qualquer e não cultivar senão uma
pequena lavoura, se alimentando logo de sua produção. Viver para a própria
subsistência e não depender senão de si próprio, sempre com uma muda de roupa à
mão e pronto para recomeçar, sem se prender a muitos negócios. Um homem pode
ficar rico até mesmo na Turquia, se for, sob todos os aspectos, um bom súdito
do governo turco. Confúcio disse: “Se um Estado é governado pelos princípios da
razão, pobreza e desgraça são objetos de vergonha; se um Estado não é governado
pelos princípios da razão, as riquezas e honrarias são objetos de vergonha”.
Não: até eu precisar que a proteção de Massachusetts me seja proporcionada em
algum distante porto do Sul, onde minha liberdade esteja em perigo, ou até que
eu me dedique exclusivamente a construir um patrimônio na minha terra por meio
de um empreendimento pacífico, estou em condições de recusar minha lealdade a
Massachusetts, e o direito deste estado sobre minha propriedade e minha vida.
Custa-me menos, em todos os sentidos, sofrer as penas decorrentes da
desobediência ao Estado do que me custaria obedecê-lo. Neste caso, eu me
sentiria diminuído em meu valor. Há alguns anos, o Estado me procurou em nome
da Igreja, e me intimou a pagar uma certa quantia para o sustento de um
sacerdote a cuja pregação meu pai comparecia, mas à qual eu mesmo nunca
assisti. “Pague”, eles me disseram, “ou será trancafiado na cadeia.” Recusei-me
a pagar. Mas, infelizmente, outro homem achou conveniente pagar por mim. Eu não
via por que o mestre-escola deveria pagar tributo para sustentar o sacerdote, e
não o contrário; pois eu não era o mestre-escola do estado, mas me mantinha por
meio de subscrição voluntária. Eu não via por que a escola não poderia
apresentar sua conta de impostos e fazer com que o estado atendesse às suas
demandas, assim como a Igreja. No entanto, a pedido dos conselheiros
municipais, concordei em prestar a seguinte declaração por escrito: “Saibam
todos, pela presente, que eu, Henry Thoreau, não desejo ser visto como membro
de nenhuma sociedade constituída à qual não tenha me associado”. Entreguei essa
declaração ao escrivão municipal, que a mantém com ele. O estado, sabendo deste
modo que eu não desejava ser visto como membro daquela igreja, nunca voltou a
me fazer uma exigência parecida; mas declarou que precisava se manter fiel a seus
pressupostos originais. Se eu tivesse como nomeá-las, teria então me desligado
minuciosamente de todas as sociedades às quais nunca me associara; mas eu não
sabia onde encontrar uma lista completa delas. Não pago há seis anos o imposto
individual, pré-requisito para votar. Por causa disso, certa vez fui colocado
na prisão, onde passei uma noite. E, enquanto contemplava as paredes de rocha
sólida, com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro de um pé
de espessura e a grade de ferro que filtrava a luz, não pude deixar de me
espantar com a insensatez daquela instituição que me tratava como mero
amontoado de carne, sangue e ossos a ser trancafiado. Fiquei pensando que ela
decerto concluíra por fim que aquele era o melhor uso que poderia me dar, e que
jamais pensara em se valer dos meus serviços de alguma maneira. Percebi que, se
havia uma parede de pedra entre mim e meus concidadãos, havia um muro ainda
mais difícil de transpor ou atravessar para que eles fossem tão livres quanto
eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes me pareciam um grande
desperdício de pedras e argamassa. Sentia-me como se somente eu, entre meus
concidadãos, tivesse pago meu imposto. Eles claramente não sabiam como me
tratar, mas se comportavam como pessoas de pouca educação. Em cada ameaça e em
cada cumprimento havia um erro grosseiro, pois eles pensavam que meu principal
desejo era estar do outro lado daquela parede de pedra. Eu não podia deixar de
sorrir ao constatar o modo laborioso como trancavam a porta às minhas
reflexões, que no entanto os seguiam sem qualquer obstáculo ou dificuldade,
sendo que eram elas tudo o que havia de perigoso. Como não podiam me alcançar,
eles tinham resolvido punir meu corpo, como meninos que, por não ter como
atingir alguém a quem odeiam, maltratam-lhe o cão. Percebi que o Estado era
tolo, medroso como uma mulher solitária com seus talheres de prata, e que não
sabia distinguir seus amigos de seus inimigos, e perdi todo o resto de respeito
que ainda tinha por ele, passando a sentir somente pena. Desse modo, o Estado
nunca confronta intencionalmente a consciência, intelectual ou moral, de um
homem, mas apenas seu corpo, seus sentidos. Não dispõe de inteligência ou
honestidade superiores, mas só de força física maior. Não nasci para ser
coagido. Respirarei à minha própria maneira. Vamos ver quem é mais forte. Que
força tem uma multidão? Só podem me coagir aqueles que obedecem a uma lei mais
elevada que a minha. Eles me obrigam a ser como eles. Nunca ouvi falar de
homens que tenham sido obrigados pelas massas a viver desta ou daquela maneira.
Que espécie de vida seria essa? Quando me deparo com um governo que me diz “A
bolsa ou a vida”, por que eu deveria me apressar em lhe dar meu dinheiro? Ele
pode estar atravessando um grande aperto, e não saber como agir: nada posso
fazer para ajudá-lo. Ele deve ajudar a si próprio; fazer como eu. Não vale a
pena se lamuriar a respeito. Não sou responsável pelo bom funcionamento da
máquina da sociedade. Não sou o filho do maquinista. Observo que, quando uma
bolota de carvalho e uma castanha caem lado a lado, uma delas não fica inerte
para dar espaço à outra, mas ambas obedecem a suas próprias leis, brotando,
crescendo e florescendo o melhor que podem, até que uma, talvez, eclipse e
destrua a outra. Se uma planta não pode viver de acordo com sua natureza, ela
morre. O mesmo ocorre com um homem.
A
noite na prisão foi bastante inusitada e interessante. Quando entrei, os
prisioneiros, em mangas de camisa, conversavam e desfrutavam o ar da noite
perto da porta. Mas o carcereiro disse: “Vamos, rapazes, está na hora de
trancar”; e então eles se dispersaram, e ouvi o som de seus passos retornando
às celas vazias. Meu companheiro de cela me foi apresentado pelo carcereiro
como “um camarada de primeira e um homem esperto”. Quando a porta foi trancada,
ele me mostrou onde pendurar o chapéu e contou como lidava com as coisas por
ali. As celas eram caiadas uma vez por mês, e pelo menos aquele em que
estávamos era o aposento mais branco, de mobiliário mais simples e,
provavelmente, o mais limpo da cidade. Ele naturalmente quis saber de onde eu
vinha, e o que me trouxera até ali. E, depois de lhe contar, perguntei-lhe
igualmente como ele fora parar ali, presumindo que fosse um homem honesto,
evidentemente; e, pelo modo como anda o mundo, acho que de fato era. “Ora”,
disse ele, “eles me acusam de incendiar um celeiro, mas nunca fiz isso.” Até
onde pude perceber, ele provavelmente tinha ido dormir num celeiro quando
estava bêbado, e fumara seu cachimbo ali, e assim o celeiro pegara fogo. Tinha
a reputação de ser um homem inteligente, estava ali havia três meses à espera
de seu julgamento, e teria de esperar outro tanto. Mas estava plenamente manso
e satisfeito, já que tinha pouso e comida de graça, e julgava estar sendo bem
tratado. Ele ocupava uma janela e eu a outra. Percebi que, se alguém ficava
muito tempo ali trancado, sua principal ocupação era olhar pela janela. Em
pouco tempo eu havia lido todos os folhetos deixados ali, e examinado por onde
antigos presos haviam fugido e onde uma grade havia sido serrada, e ouvido a
história de vários ocupantes daquela cela. Descobri que mesmo ali havia
histórias e rumores que nunca circulavam fora dos muros da prisão.
Provavelmente aquela é a única residência na cidade em que versos são compostos
e impressos em seguida em forma de circular, mas jamais publicados.
Mostraram-me uma lista bem longa de versos compostos por alguns jovens detidos
numa tentativa de fuga, e que se vingavam cantando-os. Extraí tudo o que pude
do meu companheiro de cela, por receio de não voltar jamais a vê-lo; mas por
fim ele me mostrou qual era minha cama e me deixou a tarefa de apagar a
lamparina. Passar uma noite ali foi como viajar por um país distante, que eu
nunca houvesse cogitado visitar. Pareceu-me nunca ter ouvido antes o relógio da
cidade dar as horas, nem os ruídos noturnos do povoado, pois dormimos com as
janelas abertas, gradeadas por fora. Foi como enxergar minha aldeia natal à luz
da Idade Média, e nosso Concord transformado num afluente do Reno, e visões de
cavaleiros e castelos desfilaram diante dos meus olhos. Eram as vozes dos
antigos moradores dos burgos que eu ouvia nas ruas. Fui um involuntário
espectador e ouvinte de tudo o que era feito e dito na cozinha da estalagem
adjacente — uma experiência completamente nova e extraordinária para mim. Era
uma visão mais detida de minha cidade natal. Eu estava bem no fundo dela. Nunca
antes enxergara suas instituições. Aquela era uma de suas instituições
peculiares, pois a cidade era sede do condado. Comecei a compreender o que
interessava a seus habitantes. Pela manhã, nosso desjejum foi enfiado cela
adentro por um buraco na porta, em pequenas vasilhas retangulares de lata,
feitas sob medida para a fresta, que continham meio litro de chocolate, pão de
centeio e uma colher de ferro. Quando pediram as vasilhas de volta, fui ingênuo
o suficiente para devolver todo o pão que não havia comido, mas meu companheiro
o apanhou e disse que eu deveria guardá-lo para o almoço ou o jantar. Logo
depois, deixaram-no sair para trabalhar num campo de feno nas vizinhanças, para
onde ele ia todos os dias, e não voltava antes do meio-dia. Então ele se
despediu de mim, dizendo duvidar que ainda voltaria a me ver. Quando saí da
prisão — pois alguém interveio e pagou o imposto —, não percebi grandes
mudanças nas coisas cotidianas, tais como as que observa alguém que entra ali
jovem e sai já velho, grisalho e cambaleante. No entanto, apresentou-se diante
dos meus olhos uma mudança no cenário — a cidade, o estado e o país —, uma
mudança maior do que a que poderia ter produzido aquela passagem de tempo tão
exígua. Vi com nitidez ainda maior o estado em que vivia. Vi até que ponto
poderia confiar, como concidadãos e amigos, nas pessoas entre as quais eu
vivia.
* *
Constatei
que sua amizade era só para os bons momentos; que eles não se dedicavam muito a
praticar o bem; que eram uma raça tão distinta da minha, por seus preconceitos
e superstições, quanto são os chineses e os malaios; que, em seus sacrifícios
pela humanidade, não arriscavam coisa alguma, nem mesmo suas propriedades; que,
afinal de contas, eles não eram nada nobres, pois tratavam o ladrão da mesma
forma que este os tratara, e esperavam salvar suas almas ao cumprir certos
ritos exteriores e proferir algumas orações, e ao trilhar de quando em quando
um determinado caminho reto, embora inútil. Este talvez seja um julgamento
demasiado severo de meus concidadãos, pois acredito que muitos deles não
estejam cientes de que têm uma instituição como o cárcere em seu povoado.
Antigamente, quando um devedor pobre saía da prisão, era costume em nossa
aldeia que seus conhecidos o cumprimentassem olhando através dos dedos,
cruzados de maneira a representar as grades de uma cela, e dissessem “Como
vai?”. Meus concidadãos não me saudavam dessa maneira, mas olhavam primeiro
para mim, depois uns para os outros, como se eu houvesse retornado de uma longa
viagem. Fui preso quando ia ao sapateiro buscar um sapato que estava no
conserto. Quando fui solto, na manhã seguinte, resolvi completar minha pequena
tarefa e, tendo calçado meu sapato consertado, fui me juntar a um grupo
empenhado em colher mirtilos e que esperava impaciente que eu lhes servisse de
guia. Em meia hora — pois o cavalo foi arreado prontamente — eu estava no
centro de um campo de mirtilos, em uma das colinas mais altas, a quatro
quilômetros de distância, e dali o Estado não podia ser visto em parte alguma.
Essa é toda a história das “Minhas prisões”.
* *
Nunca
deixei de pagar o imposto das estradas, porque tenho tanto desejo de ser um bom
concidadão quanto de ser um mau súdito; e no que diz respeito à sustentação das
escolas, estou fazendo minha parte pela educação de meus compatriotas. Não é
por nenhum item particular da relação de impostos que me recuso a pagá-los. Eu simplesmente
desejo recusar a sujeição ao Estado, afastar-me dele e ficar fora de seu
alcance. Não me interessaria rastrear o percurso do meu dólar, mesmo que
pudesse, para ver se ele compra um homem ou um mosquete para matar um — o dólar
é inocente —, mas me preocupo em rastrear os efeitos de minha sujeição. Na
verdade, declaro silenciosamente guerra ao Estado, à minha maneira, embora eu
ainda siga fazendo uso dele e obtendo as vantagens que ele pode me dar, como é
comum nesses casos. Se outros, por solidariedade ao Estado, pagam o imposto que
é exigido de mim, não fazem mais do que já fizeram em seus próprios casos, ou
melhor, encorajam a injustiça num grau maior do que o requerido pelo Estado. Se
eles pagam o imposto por conta de um interesse equivocado pelo indivíduo
tributado, para salvar seu patrimônio ou evitar que ele vá para a cadeia, isso
ocorre porque eles não avaliaram devidamente até que ponto deixam que seus
sentimentos particulares interfiram no bem público.
Esta
é, portanto, minha posição no momento. Mas não se pode ficar demasiado em
guarda num caso assim, sob pena de que sua ação seja rotulada de teimosia, ou
de excessiva preocupação com as opiniões alheias. Que cada um trate de fazer
apenas o que lhe cabe, e no tempo certo. Penso que às vezes, afinal, essas
pessoas têm boas intenções, só que são ignorantes. Agiriam melhor se soubessem
como fazê-lo: por que dar a meus semelhantes o trabalho de me tratar de um modo
que foge à sua inclinação? Mas, pensando melhor, isso não é razão para que eu
devesse fazer como eles fazem, ou permitir que outros sofram um tormento muito
maior de outra espécie. E digo ainda algumas vezes a mim mesmo: quando milhões
de homens, sem ardor, sem malevolência, sem qualquer tipo de ressentimento
pessoal, exigem de você apenas alguns xelins, sem a possibilidade — pois assim
é a constituição deles — de retirar ou alterar sua demanda atual, e você, por
sua vez, não tem a possibilidade de apelar a outros milhões, por que se expor a
essa esmagadora força bruta? Você não resiste com a mesma obstinação ao frio e
à fome, aos ventos e marés, mas se submete pacificamente a mil injunções
semelhantes. Você não mete a cabeça na fogueira. Mas, na mesma medida em que
não considero esta força inteiramente bruta, mas sim parcialmente humana, e
mantenho relações com esses milhões de homens e com outros tantos milhões, e
não simplesmente com coisas brutas ou inanimadas, vejo que lhes é possível
apelar, primeiro e de imediato, ao seu Criador e, em segundo lugar, a eles
mesmos. Mas, se eu coloco deliberadamente minha cabeça no fogo, não há apelo
possível ao fogo ou ao Criador do fogo, e só posso culpar a mim mesmo. Se eu
pudesse me convencer de que tenho algum direito a estar satisfeito com os
homens tais como são, e a tratá-los de modo correspondente, e não de acordo com
as minhas exigências e expectativas de como eles e eu, em alguns aspectos,
deveríamos ser, então, como um bom muçulmanoe fatalista, eu teria de me
empenhar para ficar satisfeito com as coisas tais como elas são, e dizer que
assim é a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a
essa força e a outra puramente bruta ou natural, que é a que posso resistir com
alguma eficácia, mas não posso ter a pretensão de, a exemplo de Orfeu, mudar a
natureza das rochas, árvores e animais. Não desejo brigar com nenhum homem ou
nação. Não desejo me perder em minúcias, fazer distinções sutis ou me colocar
acima de meus semelhantes. Ao contrário, posso dizer que até procuro uma
desculpa para acatar as leis do país. Estou mesmo muito disposto a acatá-las.
De fato, tenho razões para desconfiar de mim mesmo quanto a este tópico; e a
cada ano, quando o coletor de impostos aparece, eu me vejo resolvido a passar
em revista os atos e posições dos governos geral e estadual, bem como o espírito
do povo, a fim de descobrir um pretexto para a obediência.
Devemos ter afeto por nosso país como
temos por
[nossos pais;
E se em algum momento deixarmos de
honrá-lo Com o nosso amor ou com nossa dedicação,
Devemos respeitar as aparências e
ensinar à alma
[Matter]As coisas da consciência e da
religião,
E não o desejo de poder ou benefício.
Acredito
que o Estado logo será capaz de me tirar das mãos todo trabalho desse tipo, e
então não serei mais patriota que o restante de meus patrícios. Contemplada de
um ponto de vista menos elevado, a Constituição, com todas as suas falhas, é
muito boa; a lei e os tribunais são muito respeitáveis; até mesmo este estado e
este governo americano são, em vários aspectos, bastante admiráveis e
extraordinários, e devemos ser gratos a eles, como muitos já disseram. Mas, de
um ponto de vista um pouco superior, são como os descrevi; e vistos de mais
acima ainda, do alto de tudo, quem poderia dizer o que são essas instituições,
ou o quanto vale a pena examiná-las e refletir sobre elas? No entanto, o
governo não me preocupa muito, e dedicarei a ele a menor quantidade possível de
pensamentos. Não são muitos os momentos da vida nos quais vivo sob um governo,
mesmo neste mundo tal como ele é. Se um homem tem pensamento, fantasia e
imaginação livres, de tal modo que o que não é jamais lhe pareça ser por muito
tempo, governantes insensatos não podem interrompê-lo definitivamente. Sei que
a maioria dos homens pensa de modo diferente do meu, mas aqueles cujas vidas
são, por ofício, dedicadas ao estudo de semelhantes assuntos satisfazem-me tão
pouco quanto os demais. Estadistas e legisladores, estando tão completamente
entranhados na instituição, nunca conseguem observá-la de modo distinto e
franco. Falam da sociedade em movimento, mas não têm nenhum lugar de repouso
fora dela. Podem ser homens de certo discernimento e experiência, e sem dúvida
inventaram sistemas engenhosos e mesmo úteis, pelos quais lhes somos
sinceramente gratos; mas toda a sua perspicácia e sua utilidade situam-se dentro
de limites não muito amplos. Têm o hábito de esquecer que o mundo não é
governado por diretrizes e conveniências. Webster nunca chega aos bastidores do
governo, e portanto não pode falar com autoridade a seu respeito. Suas palavras
são sinônimo de sabedoria para os legisladores que não cogitam fazer nenhuma
reforma essencial no governo vigente. Mas, para os pensadores, e para aqueles
que legislam para todos os tempos, ele nem chega a vislumbrar o assunto. Sei de
alguns cujas especulações serenas e sábias sobre o tema logo revelariam os
limites do alcance e da receptividade da mente dele. No entanto, comparadas com
a atuação reles da maioria dos reformistas, e com a ainda mais reles sabedoria
e eloquência dos políticos em geral, as palavras de Webster são quase as únicas
sensíveis e valiosas, e damos graças aos céus por sua existência.
Comparativamente, ele é sempre vigoroso, original e, acima de tudo, prático.
Ainda assim, sua virtude não é a da sabedoria, mas a da prudência. A verdade de
um advogado não é a Verdade, mas a coerência, ou uma conveniência coerente. A
Verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e não está preocupada
primordialmente em revelar a justiça que possa porventura ser compatível com o
mal. Webster bem merece ser chamado, como foi, de Defensor da Constituição. De
fato, não há golpes que ele desfira que não sejam de defesa. Ele não é um
líder, mas sim um seguidor. Seus líderes são os homens de 87. “Nunca empreendi
iniciativa alguma”, diz ele, “e nunca me propus a isso; nunca apoiei iniciativa
alguma, nem pretendo, no sentido de perturbar o acordo original pelo qual os
vários estados constituíram a União.”
No
entanto, pensando na chancela que a Constituição concede à escravidão, ele diz:
“Por fazer parte do pacto original, que continue”. Não obstante sua notável
argúcia e habilidade, ele é incapaz de separar um fato de seu contexto
meramente político e de contemplá-lo de modo absoluto, tal como se apresenta ao
intelecto — por exemplo, o que cabe a um homem fazer, na América atual, no
tocante à escravidão. Porém, se aventura a fazer (ou é levado a isso)
afirmações desesperadas como as que se seguem, embora admitindo estar falando
em termos absolutos, e como homem particular; que novo e singular código de
deveres sociais pode ser inferido disso? “O modo como”, diz ele, “os governos
dos estados onde existe a escravidão devem regulamentá-la é de seu próprio
arbítrio, levando em consideração sua responsabilidade perante seus eleitores,
perante as leis gerais da propriedade, humanidade e justiça, e perante Deus.
Associações formadas alhures, nascidas de um sentimento humanitário, ou de
outra causa qualquer, nada têm a ver com isso. Elas nunca receberam qualquer
encorajamento de minha parte, e nunca receberão.”a Aqueles que não conhecem fontes
mais puras da verdade, que não foram mais longe correnteza acima, apegam-se,
prudentemente, à Bíblia e à Constituição, e delas bebem com reverência e
humildade. Mas aqueles que avistam de onde ela vem para desaguar neste lago ou
naquela lagoa, aprumam o corpo mais uma vez e continuam sua peregrinação até a
nascente. Nenhum homem dotado de gênio para legislar apareceu até hoje na
América. Eles são raros na história do mundo. Há oradores, políticos e homens
eloquentes aos milhares, no entanto ainda não tomou a palavra o orador capaz de
esclarecer as questões mais controversas do momento. Amamos a eloquência pela
eloquência, e não por alguma verdade que ela possa expressar, ou algum heroísmo
que possa inspirar. Nossos legisladores ainda não aprenderam o valor
comparativo que têm, para uma nação, o livre-mercado e a liberdade, a união e a
retidão. Eles não têm gênio ou talento sequer para questões relativamente
modestas de tributação e finança, comércio, manufatura e agricultura. Se
contássemos apenas com a verborrágica esperteza dos legisladores do Congresso
para nos guiar, sem que ela fosse corrigida pela devida experiência e pelas
queixas válidas do povo, a América deixaria de ocupar sua posição entre as
nações. Há 1800 anos, embora talvez eu não tenha o direito de dizêlo, foi
escrito o Novo Testamento; no entanto, onde está o legislador com suficiente
sabedoria e talento prático para se valer da luz que essas escrituras lançam
sobre a ciência da legislação?
A
autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter — pois
obedecerei satisfeito àqueles que sabem mais e fazem melhor do que eu, e em
muitos casos mesmo àqueles que nem sabem tanto e nem fazem tão bem —, é ainda
uma autoridade impura: para ser rigorosamente justa, ela deve ter a aprovação e
o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre minha pessoa e meu
patrimônio senão o direito que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia
absoluta para uma monarquia limitada, de uma monarquia limitada para uma
democracia, é um progresso em direção a um verdadeiro respeito pelo indivíduo.
Mesmo o filósofo chinês era sábio o bastante para ver no indivíduo a base do
Império. Será a democracia, tal como a conhecemos, o último aperfeiçoamento
possível em matéria de governo? Não será possível dar um passo adiante em
direção ao reconhecimento e à organização dos direitos do homem? Jamais um
Estado será verdadeiramente livre e esclarecido se não reconhecer o indivíduo
como um poder mais elevado e independente, do qual deriva todo o seu próprio poder
e autoridade, e não o tratar de modo apropriado. Agrada-me imaginar um Estado
que enfim possa se permitir ser justo com todos os homens, e tratar o indivíduo
respeitosamente como semelhante; que nem mesmo considere uma ameaça à sua
própria tranquilidade o fato de alguns indivíduos se apartarem dele, deixando
de imiscuir-se nele ou de ser por ele abarcados, desde que cumpram todos os
seus deveres de cidadãos e seres humanos. Um Estado que gerasse esse tipo de
fruto, e o deixasse cair tão logo amadurecesse, prepararia o caminho para um
Estado ainda mais perfeito e glorioso, que também já imaginei, mas ainda não
avistei em nenhuma parte.
HENRY
DAVID THOREAU
A
desobediencia civil
[1849]
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