O ESPÍRITO NÓMADA
KEnnETH WHITE
ED. DERIVA
Passeios em volta do lago
O que eu gosto mais en Thoreau é o seu espirito Anarquista, a sua
dissidência, o facto de ele ter seguido a sua propia via contrário a tudo e
contra tudo.
WALT WHITMAN
1. TRASCENDENTALISMO e DESCENDENTALISMO
No mês de
Março de 1853(tinha ele entao trinta e seis anos), Henry Thoreau recebeu uma
carta da Associação americana para o progresso das ciencias, pedíndo-lhe que
respondesse a varias preguntas das quais a principal era esta: “Qual é a
ciencia que lhe interesa mais, tomando-se a palabra ciencia na sua mais vasta
acepção?” Henry cumpriu sabiamente a tarefa, mais anotou, mais longamente no
seu Journal: “ Se me fosse possível
expor un pequeño número de pessoas escolhidas qual é a parte das pesquisas
humanas que me ocupa –sentir-me-ia até feliz se tivesse uma oportunidade para o
fazer–, sinto que isso faria de min a troça do mundo dos sábios, o
descrever-lhes ou tentar descrever-lhes o ramo da ciencia que mais me interessa,
pois eles não crêem na ciencia que tem por objecto as leis superiores. Assim,
tive que falar a linguagem deles e pormenorizar-lhes essa pobre parte de min
propio que é a única que são capazes de
compreender. Na realidade, eu son un místico, um trascendentalista, e um
filósofo da natureza, ainda por cima. Agora que pensó nisso, devia ter-lhes
dito imediatamente que sou um trascendentalista. Teria sido a maneira mais
rápida de lhes explicar que eles não perceberiam nada das minhas explicações.”
Em 1839, Ralph
Waldo Emerson escrevia, por sua vez, no seu diário:
“Neste
momento, no Massachusetts, jovens, assim como menos jovens, estão a viver uma
revolução. Não se trata de uma conspiração organizada: não votam, não publicam
em grupo, não têm reuniões. Nem sequer se conhecem un saos outros. Só uma coisa
os une: o amor da verdade, o trabalho da verdade.”
É do
movimiento trascendentalista que
Emerson fala. E se termos tais como “amor a verdade”, trabalho da verdade”,
podem parecer um tanto especiosos, é porque nos seus começos o
trascendentalismo era efectivamente bastante vago. Os trascendentalistas não
eran tecnólogos da inteligencia, foram antes pesquisadores, pesquisadores extravagantes
que procuravam un novo espaço, tal como uma linguagem que o articulase.
Ninguém
comprendia nada das primeiras conferências de Emerson. “Sentia-se vagamente,
dizia um dos seus ouvintes, que algo de esencial e de muito belo se havia
pasado ali, mão se chegava a detectar de que se trataba.” Quanto a Henry
Thoreau, fazer-se compreender era a mais insignificante das suas preocupações.
Ele chega a registrar no seu Journal
que gostaria de criar uma frase que nenhuma inteligencia humana viesse nunca a
comprender. Seria essa frase, talvez, a que contería o segredo do universo.
Aos olhos
das autoridades ortodoxas, eclesiásticas e académicas da época, o
trascendentalismo era “ a forma masis recente da infidelidade” (dixit o profesor Norton de Harvard).
Censurava-se em Emerson –que por seu lado havia abandonado o seu confortável
munus eclesiástico para se tornar a figura de proa dessa no geração de
estáticos –a sua “conversa”, os seus “discursos” (por que diabo não havia ele
de se contentar em ser um homen de letras respeitavelmente alinhado?). Nessa
“conversa” había lugar, não apenas para estrangeiros como Fitche e Shelling,
mas tambén para exóticos como Plotino, Swedenborg, Saadi e Confuncio –sem falar
do formidável e cosmogónico Bhagavag Gîta
(Henry Thoreau tambén gostava de “molhar a sopa” nessas coisas). Era insensato.
Onde é que eles queriam chegar? Para mais, de ónde é que eles vinham? Por que
aberração da natureza os patos mudos de Boston e Concord tinham podido gerar
estes cisnes bravos?
Como todo
o movimiento de envergadura, o movimiento trascendentalista não se deu sem
influências. Nesta América do início do século XIX, as influencias mais fortes
vinham da nebulosa romántica alemã, principalmente das obras de Schelling (Filosofia da Natureza, 1797; Sistema do
idealismo trascendental, 1800). Como é que o Romantiker alemão se tornou
aquilo a que se poderá chamar, em termos de antropología filosófica, homo americanus trascendentalis? Antes
de mais, por intermédio do estranho inglês Samuel Taylor Coleridge, que se
encontraba todo inteiro nos escritos de Schelling e do extravagante escocês,
Carlyle, fervente e grande encenador de ideias que se correspondeu durante
moitos anos com Emerson. Quer isto dizer que se para compreender este
movimiento for necessário considerar as ideias originais, será também
necessário ter en conta a sua tradução anglosaxónica, sem esquecer o contexto
americano local. O resultado final poderia diferir um tanto do modelo. A prova
é que Friederich Nietzsche, que detestava os Alemães em geral e os románticos
em particular, fazia as suas delicias dos ensaios de Emerson. Sem acreditar,
como Hegel, que o Weltgeist “o espírito
do mundo” se preparava para emigrar para América, Nietzsche apreciava uma
certa “rudeza” americana –e dizia a propósito de Mark Twain: “O riso americano
faz-me bem, ese género de rudes marujos à maneira de Mark Twain. Nos alemães já
não há nada que me faça rir.” Se tivesse podido conhecer os escritos de
Thoreau, tenho a certeza de que Nietzsche teria reconhecido um irmão espiritual
ainda mais próximo dele do que Emerson ou Mark Twain.
Será
assim necessário contar com todas esas influencias vindas de algures. Mas para
que uma influencia seja efectiva e
não somente uma moda, é necessário que o terreno esteja preparado, que exista
um “espaço receptivo”. E é essa receptividade, essa abertura que apresenta o
verdadeiro enigmaa. Se se aceita a noção de um condicionamento social absoluto,
tal como o puritanismo o tinha tentado instaurar, como então explicá-lo? Na
ausencia de verdadeiras técnicas de descondicionamento que podem ser
practicadas noutras civilizações (na época ainda os ianques não faziam ioga), é
necessário recorrer entre nós a um termo psicológico como “génio” e um termo
filosófico como “idealista”.
A melhor
definição do génio é a de Shopenhauer, que o distingue do talento dizendo que
se o talento atinge um objectivo que os outros vêem, o genio aponta para um
objectivo que os outros ainda não vêem . . .” Quanto ao idealismo, poderíamos
dizer de modo lapidar, que é o contrario da doutrina para a qual não há nada no
intelecto que não tenha pasado pelos sentidos. Segundo o idealismo, o intelecto
teria, pelo contrario, um poder autónomo, a tal ponto que, se o mundo ( isto é,
a totalidade do mundo, e não somente un conglomerado mais ou menos confuso de
sensaçoes “captadas”) debe ser possível, quer dizer, no apenas concebivel mas
cognoscível, deberá estar implicado
no primeiro esboço da consciencia. E é de algum modo uma “consciencia
primeira”, desembaraçada de todas as camadas secundárias (morais, sociais,
religiosas, etc.), que o trascendentalismo quer chegar, pois tudo,
virtualmente, começa aí e tudo pode recomeçar aí.
Antes de prosseguirmos
com esta busca de uma “consciencia primeira”, de um “espaço primeiro”, desse
recomeço no implícito, desembaracemos para sempre o terreno afastando todas as
caricaturas e toda as deformações, às quais o movimiento trascendentalista,
enquanto fenómeno sócio-histórico, não escapou. Existem “génios”, por exemplo,
ou antes, pessoas que se consideram como tais, em quem gostariamos de ver pelo
menos um pouco de talento. Do mesmo modo, há também idealistas tão vaporosos,
tão etéreos que lhes chegamos a preferir um bom e gordo sensualista
falstaffiano. Mas um génio pode ter talento, o génio contém o talento, enquanto que o contrario não é
verdade. O idealismo pode conter sensualidade, enquanto que nesse caso o
contrario não é verdade. O ideal, por assim dizer, é um génio talentoso e um
idealista sensual. E é exactamente isso que encontramos nos melhores
trascendentalistas americanos (para falarmos em linguagem idealista, os
verdadeiros trascendentalistas) –Henry Thoreau, por exemplo. Era Carlyle, o
intelectual escocês (a cabeça nas galáxias e os pés na turba), que dizia que o
trascendentalismo se devia sempre aliar um descendentalismo. O que Melville, o
americano meio holandés, meio escocês, apreciava em Sir Thomas Browne, era
justamente uma mistura de “génio trascendental” e de “precisão anglo-saxónica”.
E eu não vejo, pessoalmente, porque é que o idealismo não pode ir par com uma
boa dose de cepticismo experimental. De pai francés e mãe escocesa, Thoreau
anda de facto por esta “movimentação”.
Persuadido
de que as instituções da sociedade, mesmo as mais prestigiosas não entenderiam
nada da sua caminhada trascendentalista, Thoreau preferiría calar-se e
consagrar-se ao seu Journal. Se estas
instituçoes tivessem por patronos Platões ou Aristóteles, não apenas teria
consentido, mas teria sentido prazer, é ele quem o diz, em fazer uma exposição
detalhada do seu trabalho. Mas os propios Platão e Aristóteles teriam sen
duvida ficado bastante espantados ao ouvir Thoreau falar das suas pesquisas e
das suas prácticas da seguinte maneira: “Não seria delicioso ficar mergulhado
até o pescoço num pântano solitario durante um dia de verão, perfumado pelas
flores da murta do mirtilo? Doze horas, digamos, de onversa familiar com a rã
mosqueada . . .”
Só um
velho taoísta chinês ou um xamã índio teriam compreendido de que é que ele
falava e ririam de conivência. É verdade que para Li Yutang, Thoreau é “o mais
chinês dos autores americanos” e que morreu (aos 46 anos) deixando milhares de
notas manuscritas sobre os índios da América, com duas palabras na boca:
“Índios… caribu… “ O trascendentalismo de Thoreau tem raízes arcaicas muito
profundas e un humor pré colombiano.
2. Uma
economía poética
Quando
sai da universidade em 1837, despóis de ter pasado as suas mais preciosas horas
na biblioteca em vez de as pasar nas aulas, Thoreau é um perfeito representante
do intelectual do século XIX, tal como o descreve Carlyle: “um acidente na
sociedade, errante como um Ismaelita selvagem”. É suficientemente bom filólogo
para saber que o seu nome ( normando –a familia do pai vinha das ilhas da
Mancha) contém o do gran deus do Norte, Thor, maus caiu exactamente, o nosso
Henry, em pleno meio do século XIX, industrial, utilitarista, cientista,
negociante e moralizante, e pregunta-se que diabo poderá fazer ali –primeiro
ganar a sua vida sen a perder, depois, tirar dela o máximo de intensidade e de
alegría. É que a grande questão de Henry Thoreau, aquele que acompanha toda a
sua existencia e que o distingue de tantos outros intelectuais do século XIX (e
XX), é esta questão vital fundamental: “Como viver, como obter o máximo de vida
possível?”
No onício
do século XIX, os Estados Unidos não ultrapassam ainda os cinco milhões de
habitantes, as grandes ciudades são raras e pouco povoadas: Filadélfia (setenta
mil habitantes), Nova Iorque (sesenta mil), Boston ( 25 mil). Quer dizer que no
espirito desses americanos as terras incultas (the wilderness), povoadas
de selvagems, estão ainda muito próximas. Jefferson gostaria que as coisas
continuassem assim: “No conjunto da produção manufacturada, é melhor que as
nossas fábricas continuem na Europa… a perda ocasional de productos debido ao
transporte pelo Atlântico, será compensada por um lucro em felicidade e pela
estabilidade do governo. As multidões das grandes ciudades contribuem tanto
para a manutenção de un governo não corrupto como as chagas para a manutenção
do corpo humano” A América do Norte seria portanto um país são, esencialmente
agrícola, tomando da Europa o que ela tinha de bom (no dominio cultural e
artístico) e de útil (chapéus, calçado e charrúas). Mas o sonho de um sulista
(que na sua casa de Monticello havia criado o primeiro centro cultural
americano) foi barrido rápidamente pela história e, a partir do segundo decenio
do século, a América do Norte, tambén ela, estaba invadida pela industialização
cancerosa: no espaço de meio século, a população de Nova Iorque iria
multiplicar-se por dez. Nos anos trinta, Boston tinha o seu caminho de ferro
com linhas para Lowell, Providence, Worcester… Por toda parte havia meios de
comunicação: rede de estradas, caminho de ferro, cabo atlántico. No seu canto,
Thoreau continuaba ceptico: “Meios de comunicação, está muito bem, mas e se as
pessoas não têm nada a dizer umas às outras?”
É o
início daquilo que Mumford (La ville dans
l’histoire) iria chamar “a cidade industrial insensata”, com o seu ritmo
infernal, as suas condições de existencia entre o medíocre e o espantoso, a sua
destruição de toda a vida orgánica e a sua burocracia tentacular. Emerson na
América (como Ruskin ou Morris em Inglaterra) não via o “progresso” com bons
olhos. Boston parecia´lhe cheia de pessoas desprovidas de qualquer qualidade
humana que procuravam apenas prejudicar-se umas às outras. É o começo da feira
da zaragata (the rat race). Quanto a
Thoreau, dizia ele que o seu lugar preferido em Bostom era a sala de estação
onde esperaba o comboio que lhe permitiría sair dali…
Emerson e
Thoreau são precisamente intelectuais (esta palabra, com muitas outras que
constituem ainda o nosso contexto conceptual, torna-se corrente por volta de
1820). O intelectual não vive sem contradições (A pesar de tudo Thoreau vai a Boston, toma, mesmo assim, o comboio) –é talvez isso mesmo que o define.
Adam
Smith, profesor de filosofía moral na universidade de Glasgow e fundador da
política económica moderna, tinha previsto a sorte desse género “impossível” de
cidadão. Para subsistir, seria obrigado a vender no mercado productos do seu
cérebro, como se fossem meias ou chinelos. Ou então teria que se filiar numa
instituição cuja função seria fornecer ao público o pouco pensamento que a
civilização industrial ainda lhe permitisse acolher.
As
perspectivas não eran nada encorajadoras. Thoreau estaba consciente disso e não
tinha ilusões. De facto, é para ele, a maior parte dos homens leva existencias
cheias de desespero recalcado e pasa o tempo a tentar esquecer a armadilha em
que caiu. O que significa que aquele que denuncia a armadilha, e ainda mais
aquele que pretende viver fora da
armadilha, será considerado um associal, ou, por outras palabras, um inimigo do
povo. Se alguns individuis aceitavam as condições carceárias da civilização
industrial e cavavam nela, com mais ou menos masoquismo, o seu nichozinho,
outros não a aceitavam. Podemos distinguir entre os intelectuais do mercado e
os intelectuais da montanha. Emerson e Thoreau e os trascendentalistas en
geral, pertencem a esta última categoría. Ainda que aceitem uma economía de
mercado, não escrevem nem pensam para o público”. Pensam e escrevem para si
mesmos e para o espaço vital.
Já se
sabe que semelhante actividade misteriosa e escandalosa, não avança sem
dificultades de todo género. Quando a si mesmo pregunta como diabo vai ganar a
vida, Thoreau anota no seu Journal:
“Sobre a
questão de saber como ganhar a vida honestamente quase nada se escreveu que
possa chamar a atenção… Como tornar poético o nosso ganha-pão? É que, se ele não
for poético, não é a vida que ganhamos, mas assim a norte. Convêm melhorar à
mina natureza o frio e o fome do que os métodos adoptados pelos homens para se
protegerem deles. Não fosse ofacto de eu desejar fazer outra coisa –criar uma
obra -, sofrer e morrer do que ver-me obrigado a ganar a vida pelos meios que
os homens propõem.”
Para se
manter próximo do que verdadeiramente lhe interessa, Thoreau decide firmemente
manter a distancia em relação à sociedade. Para resolver o seu problema
económico vai tentar varios ofícios, qual deles mais irrisório e socialmente
mais insignificante que o anterior. Despois e ter tentado ensinar numa
institução, deixa-a, tendo ainda contas a ajustar como os directores e funda
com o irmão uma escola independiente. Durante uns tempos, vai aguentar-se
também fabricando lápiz, o ofício de seu pai. Tendo inventado um novo proceso,
poderia sem dúvida ter feito fortuna “no negócio dos lápiz”, mas essa
perspectiva não o encanta nada. Será preceptor, jardineiro, agrimensor
ocasional… mas sobretudo, como ele mesmo diz, irónica e poeéticamente:
inspector das tempestades (não titular e não assalariado).
Em certo
momento, para probar que um intelectual pode resolver o seu problema económico
mantendo total independencia e inteira disponibilidade, ou quase, do seu tempo,
vai para a floresta tentar a experiencia que o tornará célebre. Constrói (pela
soma de 28 e 12 cêntimos e meio, muito exactamente) uma cabana nas margens do
lago Walden e vive alí durante dois anos pela soma (mais uma vez muito exacta
–Thoreau sabia facer contabilidade e tinha sentido da economía) de 27 cêntimos
por semana trabalhando “com o suor do seu rostro” seis semanas por ano. “Não é
necessário, diz ele, que un homen ganhe a sua vida com o suor do seu rostro –a
menos que ele sue mais fácilmente do que eu.” É o mesmo Thoreau que ao deixar a
universidade havia declarado, sem respeito pelos espíritos sérios (e pelo
propio Deus Pai!) que contra os preceitos da Bíblia, um homen devia trabalhar
um só dia por semana e fazer o que lhe apetecesse nos outros seis…
Claro,
aquilo que agrada a Henry Thoreau (tentaremos mais tarde definir o
prazer-trabalho deste homen do exterior) não agrada necesariamente a toda a
gente. Mas uma vez aceite o principio do prazer, podem começar a discutir-se os
meios. Enquanto que na sociedade da armadilha nunca se chega a ese estádio. A
discussão faz-se sempre em função da armadilha. De facto os prazeres “de toda a
gente” em grande parte são tão somente ditados pela armadilha. São os prazeres
de homens fechados e fatigados. Enquanto que os prazeres de Henry Thoreau estvo
em sintonía com os seus desejos profundos. Pode ser que os desejos profundos de
“toda a gente”, uma vez que “toda a gente” pões o nariz de fora e desperta.
Thoreau
convida a sair.
Um tal
movimento anti-cidade, anti-industria, anti-crescimento seria “reaccionário”,
ou, pelo contrário, tratar-se-ia de uma revolução fundamentalista? Esses poetas-intelectuais que foram os
transcendentalistas teriam razão? Quando B:F. Skinner, especialista em
comportamento humano e que nada tinha de “poeta”, escreve o seu Walden Two em 1945, opta resolutamente
pela segunda hipótese e toma a experência de Walden como modelo de uma
transformação sócio-económica e cultural radical que hoje aparece como uma
necessidade evidente se formos capazes de ver o mundo e a vida sem antolhos
ideológicos.
“Diz-se
muitas veces, escreve ele no prefácio da reedição do seu livro em 1976, que o
mundo sofre dos males do gigantismo, e as nossas grandes cidades ultrapassaram
sem dúvida toda a possibilidade do bom governo, porque há demasiadas coisas que
vão mal. Não seria necessário antes pormo-nos a questão se temos mesmo
necessidade de grandes cidades? Dado que os modernos meios de comunicação e de
transporte, as empresas já não têm necessidade de estar próximas umas das
outras, e quantas pessoas será necessário termos à nossa volta para vivermos
uma vida feliz?.
Seja ou não
seja a cabana de Walden, com ou sem meios de telecomunicações, um modelo para o
futuro, o que é certo é que Henry Thoreau poeta e intelectual, ou mellor
dizendo, homen desejoso de viver ao máximo a sua vida, fora de todos os esquemas
e de todos os quadros, teria encontrado nisso uma solução para os seus
problemas. Então porque é que ele não ficou em Walden? Penso que, muito
simplesmente, ele não se queria “waldenizar”. Queria manter a vida aberta à sua
frente. Tendo realizado a sua exploração, não queria ser o explorador dela. E
quem sabe se em Walden o pessoal não ira aparecer em rebanho para contemplar o
“fenómeno”? Ora Thoreau insistia acima de tudo em conservar as mãos livres. A
via passava por Walden, mas não era lá que acabava. O essencial para Thoreau
estava alhures(noutro lugar) e, por pura felicidade, regressa muito
simplesmente à casa familiar onde tem um quarto sob o travejamento do tecto.
Thoreau em família na cidadezinha de Concord, é Nietzsche nas pensões de
família de Itália e de Engadine. O “professorzinho”, o pequeno dos Thoreau...
Existe
pois uma questão económica. E a isso acresce uma questão política. Thoreau era
vigorosamente apolítico e de uma especie pouco comum. Se é capaz de reagir
espontaneamente e mais rapidamente que muitos contra as injustiças, se recusa
pagar certos impostos (não gostava do modo como o seu dinheiro era empregue) e
vai para a prisão, se prega (e nisso é inspirador de Tolstoi e de Gandhi) a
desobedência civil, se intervêm quase sozinho no início, em favor do
anti-esclavagista John Brown, não tem espírito político e é em absoluto o
contrário de um militante: “O aspecto político do país nunca é regozijante. Un
homem desvaloriza-se quando se faz membro de uma organização política.” E
ainda: “As revoluções repentinhas deste nosso tempo... tomaram uma importância
exagerada. Interessam-me pouco.” Se
Thoreau é revolucionario (e é-o), é tomando o seu tempo e sabendo distinguir
entre as tempestades passageiras e as derivas continentais.
Henry
afirma-se pois, sem vergonha nem equívico, apolíptico.
Para muitos, semelhante coisa seria suficiente para o desqualificar. Mas não se
poderia pensar, sem se ser suspeito, quer de irrealismo, quer de reaccionario
disfraçado, que uma polis lúcida sentiria necessidade de tais apolíticos, para
não mergulhar na complacência intrassocial e perdendo de vista certas questões
mais vastas? Não se poderia pensar que as instituções teriam necessidade de
semelhantes não-institucionais para não se afundarem na esclerose? o
Utilitarista John Stuart Mill acabou por reconhecer que os representantes da
“escola germano-coleridgeana”, ou seja, os transcendentalistas, tinham razão
contra os utilitaristas de vistas mais curtas, “razoáveis” e “realistas” como
Bentham:
“O que
torna particular a escola germano-coleridgiana, é que para lá das controvérsias
imediatas, ela considerou os princípios fundamentais que se encontram na base
de toda a controvérsia deste tipo. Com a excepção de um ou outro pensador solitário,
foram eles os primeiros a sondarem profunda e globalmente as leis que governam
a existência e o crescimento de toda a sociedade humana... Ao procederam assim,
criaram, não uma política de partido, mas uma filosofia social. Trouxeram-nos não
uma defesa de umas quantas doutrinas éticas ou religiosas particulares, mas uma
contribuãó, a mais vasta alguma vez realizada por um grupo de pensadores para a
filosofia da cultura humana.”
Thoreau não
é apenas apolítico, pode chegar a parecer inumano: “As opinões que os homens
professam, as instituções, as concepções do senso comum, são todas estreitas e
enganadoras. É a nossa fraqueza que exagera até esse ponto as virtudes da
filantropia e da caridade e as coloca na primeira fila dos atributos humanos. O
mundo, tarde ou cedo, há-de fatigar-se da filantropia das religões que a têm
por base principal.”
Cem anos
após Thoreau ter escrito estas palavras, pode pensar-se que o mundo está cada
vez mais longe de se fatigar com tais religões e tais ideologias –talvez precisamente
porque lhe falta energia, porque está já demasiado
fatigado.
Thoreau não
aceita viver num mundo fatigado. Quer sair, intelectual e fisicamente (“também
o meu corpo rejeita uma vida mediocre e mole”), quer ir para o exterior para poder encontrar o Mundo
(escrevo a palavra com uma maiúscula, à maneira trascendentalista mais atraente
para si do que e aldeia, a cidade, o Estado, a nação e mesmo a civilização.
O que é
que significa reencontrar o Mundo?? Era esse o estudo de que Thoreau não ousava
falar perante a Associação para o avanço
das ciências. É o que ele chama “naturalizar-se”. É todo o assunto do seu Journal.
É no
momento que se põe as suas primeiras questões, em 1837. que Emerson lhe
pregunta se ele escreve um diário. Sem dúvida qye Thoreau responde pela
negativa, mas o conselho de Emerson deve ter-lhe parecido bom. E por isso a
primeira entrada do seu Journal tem a data de 22 de Outubro de 1837 e é a
seguinte: “O que é que o senho faz agora?? preguntou-me ele. Escreve um diário?
De maneira que escrevo hoje a minha primeira entrada.”
Manter um
diário era então uma prática comum. Pode dizer-se que entre os protestantes o Journal tinha tomado a vez das confissões
entre os católicos. Mas como os trascendentalistas, a questão era menos de
confissão do que inspiração –era necessário anotar esses lampejos que perfuram
o céu da consciência normal e revelam o Mundo não mundano.
É
divertido e significativo saber-se que Thoreau tenha tido dificultade em
arranjar um caderno de folhas virgens, pois nas lojas o que havia eram livros
de contas de pájinas riscadas com linhas vermelhas ou azuis (as contas de
Thoreau eram mais fáceis de fazer!) O que interessa é que a partir desse
momento e durante vinte e seis anos, todos os aspectos e todos os pormenores do
questionamento e da busca de Henry ficaram escritos no seu Journal. Quando
morreu, ele era constituído por trinta e nove cadernos, totalizando cerca de
dois milhões de palavras, todos alinhados numa caixa de madeira que ele havia
fabricado para esse mesmo fim. De início, o diário era o reservatório onde ía
buscar os materiais para as suas obras –daí as enormes lacunas no texto,
sobretudo entre 1843 e 1847, já que Henry lhe tinha extraido, com a tesoura,
passagens para utilizar noutros sítios. Mas a pouco e pouco, o Journal iria ter
uma existência autónoma, valorizada pela sua própia descontinuidade:
“Pregunto-me
se os pensamentos escritos a seguir num diário não ganhariam em ser impressos
tais como são, em vez de os reunirmos, segundo os seus temas, em ensaios separados...
parece-me que eu não teria, para esses esboós, um quadro adequado... “
Se
Thoreau é um escritor de promeiríssima ordem, não é a perfeição literária que
nos interessa à partida, mas sim um caminho de conhecemento.
3. A grande
relaçao
“Sou um místico,
um trascendentalista e um filósofo da natureza... “. Falamos já do termo
“trascendentalista”. Quanto à mística”, Thoreau entende como tal muito
simplesmente tudo o que lhe interessa, o que lhe dá prazer, nada tem a ver com
o “senso comum” pois sendo a maior parte dos homens sonâmbulos, o seu decantado
“senso comum” não passa, diz Henry (sem rodeios e sem respeito pelas persoas,
coma sempre), de uma espécie de ressonar. Fica-nos o “filósofo da natureza”. Se
a sociedade que o rodeia contèm um grande número de professores de filosofía, o
filósofo, no sentido substancial em que o entende Thoreau, é coisa muito rara.
Esta
utilização da palavra “substancial” vem desde Colerdige que distinguia entre
“conhecimento substancial” e “conhecimento abstracto”. O sustancial é “essa
intuição das coisas que surge quando nos encontramos unidos ao todo”, enquanto
que o abstracto é a imagem que tem do mundo uma consciência que vê a natureza e
o espírito, o sujeito e objecto, a coisa e o pensamento, em oposição. Esta “consciência
separada”, não pode senão dar lugar a uma linguagem morta, quando muito útil
para a comunicação geral. O conhecimento substancial é pelo contrario
consubstancial ao ser e dá lugar a uma linguagem viva que é a poesia. Ela
constitui a única verdadeira ciência, sendo qualquer outra ciência, unicamente
um símbolo daquela.
Quando
Thoreau vai para os bosques, é em busca desse conhecimento substancial e dessa
linguagem viva. Quer dizer, em termos abstractos (em linguagem morta –mas
útil), que no plano de fundo do Journal
existe uma questão de epistemologia ligada a uma questão poética. Essas questões
constituem uma busca. E essa busca é fundamentalemnte uma busca de identidade
–de identidade substancial.
Nada mais
distante de Thoreau que o “eu” daquele que exibe a sua personalidade. Se
perante a sociedade, ele sabe ser afirmativo e “egoisticamente” energético como
nenhum outro, nos bosques sabe que os momentos mais densos são aqueles em que
ele perde completamente a sua identidade perssoal e “se dissolve na bruma
soalheira”. Se lhe aconteceu durante a juventude ir á pesca, isto é, intervir
no curso da natureza a fim de extrair dela qualquer coisa que fosse
estritamente necessária à sua pessoa, acabou por preferir divertir-se com os
peixes, como com qualquer outra coisa, uma outra espécie de relação, mais
vasta, de maior gozo: “Imagino que sou anfibio e que nado, com a tenca e a
dourada em todos os rios e charcos da região, ou que dormito com o majestuoso
lúcio sob os nenúfares da nossa ribeira.”
Dessa
identificação “mística” tira um créscimo do ser, aumenta a sua sensação de
vida. É a sensação pura que o enche de alegria, a que sente por exemplo quando
corre atrás da raposa: “Sacudi a cabeça e atirei-me, farejando o ar como um cão
que corre, cheio de desprezo, a cada salto contra o mundo e as suas Sociedades
filantrópicas.” Não perde apenas a sua identidade pessoal, perde a sua
humanidade. E que ninguém lhe venha falar de moral! “Os melhores pensamentos não
somente estão limpos de tristeza, mas tambén de moralidade. O universo
ofrece-se aos nossos pensamentos num dilúvio de luz branca.”
Mas se
thoreau vive estes momentos de êxtase, de sensação pura e de conhecimento
substancial há igualmente nele um demonio do saber que observa, anota os
pormenores, mede até, e conta –e isto inquieta-o, pois ao ligar-se ao
particular, ele vê-se perder o sentido e a sensação, não somente do geral, mas
de algo mais compacto a que chama “cosmos”: “Temo que o carácter da minha
ciência se possa vir a tornar de ano para ano mais preciso mais técnico... Vejo
os pormenores mas não o todo nem a sombra do todo. Somo as partes que afirmo
conhecer.”
Há nele
luta entre a consciência cósmica e a ciência exacta.
Durante
as suas excursões que pretendia que fossem, antes de mais “mitológicas”,
Thoreau acumulava observações precisas nos domínios mais diversos. Foi um
botánico honesto e um ornitologista igualmente honesto. Claro que como Goethe
desconfiava dos instrumentos e continuava fiel ao “estudo contemplativo” (Anschauen) do poeta-sábio de weimar: ele
possuía um telescópio, pedia por vezes emprestado um microscópio (mas teve
outra caixa de guardar espécimes que não fosse o seu chapéu!). No entranto, com
o seu don de observação e a sua atenção aos pormenores, acabou por acumular um
saber bastante exacto e elaborar teorias sobre o crescimento das florestas e a
estratificação termal da água, para darmos apenas dois exemplos. O Journal
abunda tambén em detalhes metereológicos que hoje servem de estudo. Quer dizer
que Thoreau foi a sua maneira um cientista e como jà se constatou, a Associação americana para o avanço das
ciências considerava-o um dos seus. E no entanto vimos como Thoreau se
distanciava dessa associação. A ciência tal como a entendia dedicava apenas um
interesse secundário: “As anécdotas da ciência parecem-me triviais e
insignificantes. Sinto que não é esse o modo de atiguir o verdadeiro
conhecimento.” E volta muitas vezes ao tema: “O meu desejo de saber é
intermitente, mas o meu desejo de comunhão com o esoírito do universo... é vivaz e constante.” E ainda noutro local:
“A inteligência da maior parte dos homens é estéril. Não fertilizam nem são
fertilizados. É a união da alma com a Natureza que torna a inteligência fecunda
e que engendra a imaginação.”
Segundo
ele seria teoricamente impossível (mesmo se practicamente não conseguisse fazer
a separação) reconciliar o ponto de vista do poeta com o do sábio: “A ciência
pode ser o segundo amor do poeta –quando o tempo lhe tiver feito murchar a
flor-, mas não pode ser o primeiro.” Não que ele esperasse do poeta um vago
lirismo pessoal ou quallquer discurso etéreo –foi precisamente para evitar isso
que começou a anotar as suas observações. Portanto ele não recusava dos factos,
queria que fossem mais substanciais do que na ordem cintífica:
“Tenho um
caderno de notas para os factos, outro para a poesia, mas acho muitas vezes
difícil preservar essa distinção vaga... sei que se os meus factos mostrassem
uma vitalidade e um significado suficiente... não teria necessidade de um livro
de poesia.”
O que
Thoreau procura nos factos e no seu contacto com a natureza já não é uma relação
científica, mas a grande relação:
“Quando se examinam factos superficialmente, eles aparecem nas suas relações
com tal ou tal institução. Gostaria que eles fossem expressos segundo um olhar
mais profundo, relações mais distantes, de modo que o leitor ou o ouvinte não
os reconhecesse, não mais que a sua significação, se se mantiver no limiar da
vida vulgar, mas que lhe seja neccesário transformar-se para os compreender. Gostaria
que um homem só falasse quando a verdade das suas palavras exalasse
naturalmente de si e tão naturalmente como o odor do rato mosqueado das roupas
do trapeiro. Num primeiro contacto não somos capazes de exprimir a verdade, é
necessàrio estarmos impregnados e saturados.”
De facto,
podemos ver esboçar-se no trabalho de Thoreau e nas suas contradições, varias
correntes de pesquisas bastante actuais. Podemos ver o esboço de uma
fenomenologia (esse “paraíso” que Husserl presentiu ao morrer), tal como a aproximação
a uma ciência holística (holos,
inteira) que afasta toda metodologia reducionista e se esforça por pensar en
termos ecológicos e binómicos.
Mas o
caminho de Thoreau tem uma presença,
uma energia e uma passada que faltam ao melhor pensador e ao melhor
pesquisador. É ao mesmo tempo do exterior
que o pensador e o pesquisador é mais inteiro.
Nele, pensamento e vida, experiência e pesquisa, são inseparáveis. Esta integridade que detectamos em Thoreau é
externamente rara na nossa civilização que tem possivelmente os seus
fundamentos num pensamento separador. É por isso que não nos podemos impedir de
associar Thoreau a outras civilizações. O que ele propio não hesitou em fazer.
As referências à Ásia abundam nos seus escritos (há que pensar menos em termos
de exotismo e quando diz de Whithman que ele “se parece estranhamente com os
Orientais”, pensamos também no propio Thoreau. Thoreau sai de uma civilização
ocidental com dois mil anos de idade.
Se Liu
Yuntang podia dizer de Thoreau que ele era “o mais chinês dos autores
americanos”, é não apenas porque ele vivia numa “Ásia de serenidade”, mas
também porque tinha o sentido do Tao:
Quando desabrocham as flores da montanha
Os seus perfumes exprimem o sentido original das coisas
— quantos
poemas tch’an poderiam ter sido assinados por Henry Thoreau! Quantas frases de
Thoreau poderiam ser perfeitos poemas tch’an. Poder-se-iam multiplicar os
exemplos de escrita meditativa, marca de uma absoluta frescura, de Thoreau.
Ofreço a min mesmo o prazer de citar dois exemplos disso:
“Talvez,
nessa manhã de primaveira em que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, já
existesse o lago Walden, agitado por uma doce chuva acompanhada de bruma e
vento do sul, e coberto de miríades e patos e de gansos que não sabiam da Queda(morte).”
Palavras
simples, ritmo requintado.
E
despois, ainda:
“Choveu
no primeiro dia de Abril e o gelo fundiu-se. Cedo, pela manhã, num nevoeiro
espesso, ouvi um ganso perdido voar sobre o lago e grasnar como se fosse o
própio espírito do nevoeiro.”
Conheço
poucos exemplos de uma escrita tão límpida.
Thoreau é
pois taoista e tch’an e estava consciente das suas afinidades orientais. Mas
quando pensava num conhecimento-experiência total na paisagem que tinha diante
dos olhos, surgia no seu espírito a imagem do Índio. Para Thoreau, Americano
sem tambor nem trombeta, “naturalizar-se” tornar-se um habitante da natureza em
vez de ser convidado dela, estudando-a ou explorando-a, é tornar-se índio. Nathaniel
Hawthorne não se esforçava por “cultivar o modo de ser índio”.
“Onde quer
que eu vá, dou com pistas índias”. O índio propiamente dito havia desaparecido
e já não vivia senão na memoria de “algúns poetas perseverantes”. Thoreau
passou uma grande parte do seu tempo a fazer pesquisas sobre a vida e cultura
dos primeiros americanos. Quando morreu deixou onze cadernos de notas muito
compactas, 3.000 páginas, das quais se tivesse tempo faria um estudo etnológico
com ilustrações e aparelho teórico, quer um grande etno-poema —e porque não as duas coisas? A propósito de
uma das suas leituras sobre os Índios, anota: “Julgaríamos ler o argumento de
um grande poema sobre o estado primitivo do país e dos seus habitantes.”
Se
Thoreau tivesse encontrado a poesia que procurava —e o Journal, no fundo, é um
livro de busca nesse sentido—, ela em nada se assemelharia à que ele chamava “a
poesia dos rostos pálidos”” (o romântico inglês Wordsworth, dizia ele, era
“demasiado domesticado para os Chippewa!”. Para encontrar o Índio e a poesía
“índia”, seria necessàrio voltar três mil anos atrás, a “uma época ainda nã0
descrita pelos poetas”. O Índio era uma “outra espécie”: “... uma outra espécie
de mortais, apenas um pouco menos selvagem do que o muskwessu que caçavam.
Espiritos estranhos, demoníacos... cuja
natureza e o destino diferem totalmente do meu”.
Mas se em
certos momentos, o intelectual civilizado do S. XIX sente a enorme distancia
entre ele mesmo e o Índio, noutros momentos encontra em si “o selvagem”, e
parece-lhe aproximar-se, tal como o Índio dos segredos da natureza, do mesmo
modo que se achega ás apalpadelas no seu Journal, do livro que gostaria de ter
escrito e de que mesmo o maravilhoso Walden
não pode ser mais do que uma sombra:
“Na
literatura, só o que é selvagem nos atrai. sabedoria e doçura são sinónimos de
aborrecemento. O que nos arrebata é o não familiar, o não civilizado, o
pensamento livre e vagabundo, o que não se aprendeu na escola, o que não foi
refinado nem polido pela arte. Um livro verdadeiramente bom é algo tão natural,
primitivo, selvagem, tão misterioso, tão ambrosíaco, tão prolífico como um
líquen ou un cogumelo.”
O journal
de Thoreau é um livro-líquen. Para mudarnos de metáfora, podemos também vê-lo
como um livro-margem: “Que a onda de cada dia deixe nas minhas páginas um
depósito, tal como deixa areias e conchas na praia. É outra tanta terra firme
que se acrescenta. Isto poderia ser o calendário das marés da alma.”
Seja qual
for o modo como o definamos, o que é certo é que nada tem de comum con aquilo
que Thoreau chama a “literatura de pãozinho de sementes de gengibre” (gingerbread
literature). Os Livros que contam são aqueles a que estamos
dispostos a consagrar nossas horas mais despertas e as de maior attenção. O Journal de Thoreau que é, se tivermos
tudo em conta, o seu magnum opus, é um desses livros.
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